Dar ou não dar certo. Anjos ou gatos. A vida solitária e decadente de artistas que não se enquadram nos parâmetros da arte apreciada pela sociedade “anti-musical, retrógrada e ultrajada pelo materialismo”, segundo Misty, é cruamente exposta por André Amaro em Os Gatos Morrem no Asfalto. A peça escrita em 1991 apresenta uma parte da realidade de Misty, uma cantora sem plateia, Bali, uma atriz desempregada, Viloro, um poeta-mendigo(ou seria mendigo-poeta?) que, cansado de mendigar como poeta, passou a poetizar enquanto mendiga, Ventana, também chamado de Ventania, palhaço na vida e nas ruas e Lis, uma bailarina de “bunda grande, quadril largo e peitos inflados”, também sem trabalho.
A obra de Amaro desmistifica a ideia do glamour artístico que compõe o inconsciente coletivo da sociedade mostrando o lugar realmente destinado àqueles que se atrevem a padecer da “loucura dos artistas” e insistem em levar sobre si o verdadeiro peso de ser escolhido pelo fazer artístico nem sempre em voga num mundo movido pela indústria cultural.
Como declara Misty, felizes mesmo são aqueles que não padecem dessa loucura e “conseguem manter a coluna ereta” como seu pai que queria ser escritor, mas foi “apenas um homem correto”. Mesmo com os “ombros largos”, o pai de Misty ainda viu a vida escorrer pelas costas, mas como declara à garota: “A vida só cabe na medida dos nossos ombros. É para eles que devemos voltar nossos olhos.” No entanto, a peça Os Gatos Morrem no Asfalto mostra que essa não é uma alternativa para aqueles que aceitaram suportar o mundo em seus ombros. Bali tenta um emprego qualquer, mas não dá certo. Viloro resolve cantar para a lua, fazer o que sabe para sua única espectadora já que “a poesia só salva os poetas, e os artistas [sem a arte] não podem inventar o mundo”, Ventana continua sua vida nas ruas usando sua imaginação “guardada no fundo de uma gaveta cor-de-abóbora no pé da cabeça”: os três que “não deram certo” são verdadeiros gatos de rua revirando o lixo, convivendo com cadáveres, completamente à margem de uma sociedade voltada para a fama e o sucesso, além de irredutível para os perdedores, para os palhaços tristes das noites.
Misty ainda tenta ser como um dos gatos, mas Viloro acredita que ela dará certo “e as pessoas que dão certo viram anjo”. Nessa busca por virar anjo, Lis resolve ter uma conversa com a Morte hilariantemente personificada na peça, sendo, inclusive, uma poetiza também. Ainda que anteriormente tenha pensado em ser prostituta ou “uma mulher comum”, prefere a busca pela morte do que a abdicação de seu posto como artista. Incomodada por uma música que vem do alto de uma torre “do tamanho de sua alma”, Lis tenta levar a Morte até o topo para silenciar aquele que toca e, nessa jornada discutem sobre olhares, o conceito de vida e outros assuntos.
Apinhada de reflexões, frases geniais, drama e comédia, Os Gatos Morrem no Asfalto é a própria arte que dá a ver o que a ideologia do status dado à Arte como instituição esconde. Para os personagens, como em Os Ombros Suportam o Mundo de Drummond, “Chegou um tempo em que não adianta morrer./Chegou um tempo em que a vida é uma ordem./A vida apenas, sem mistificação.”
A leitura dramática apresentada nas Quartas Dramáticas do dia 04/05 pelos alunos do Departamento de Artes Cênicas e dirigida pela professora Rita de Almeida, coordenadora da Companhia Teatro do Instante, recupera em tudo a genialidade da obra. Sentados em cadeiras de plástico, os atores se dispuseram frente à plateia interpretando seus papéis a todo segundo, a cada gesto, a cada movimento, mesmo quando não estavam em cena. Eram seis atores representando onze personagens. A montagem da leitura dramática apresentou algumas mudanças em relação a pequenas disposições propostas pelo texto de André Amaro. Em alguns momentos, por exemplo, os personagens voltavam-se à plateia para fazer alguma reflexão ou apontamento, como quando Misty se dirige à mulher no trem, mas não há esse personagem na apresentação, então, a personagem dirige-se à plateia ou mesmo quando a Morte de maneira improvisada pede silêncio dos espectadores para mostrar à Lis como se conversa com os olhos.
Por citar a Morte, é imprescindível ressaltar a construção do personagem montado para a apresentação. Oscilando entre uma voz assustadoramente misteriosa e histérica, a Morte arrancou gargalhadas do público com sua maneira bem definida por Lis como “psicodélica”. A interpretação do ator responsável pelo papel foi tão intensamente bem elaborada que chamou para si a atenção total dos espectadores. Não menos trabalhados e sofisticados, os demais papéis também foram extremamente bem sucedidos em impressionar a quem estava assistindo a leitura. Ventana parecia muito mais do que um simples palhaço, trazia em seus olhos a loucura e a alienação do artista desvalorizado. Viloro era o abatimento em pessoa com seus olhos caídos, quase fechados e sua cabeça oscilante. Lis, confiante e decidida, representava maravilhosamente bem o papel da bailarina insistente com a morte. Bali e Misty, ainda que representadas pela mesma atriz, traziam características próprias para o palco e, por último, mas não menos importante, o músico também foi alvo de curiosidade por suas expressões neutras e seu silêncio de palavras envolto pelos sons do sax e da sanfona. Todo o elenco trouxe à vida, de forma própria e surpreendente, a história de Amaro que, por sua vez, também esteve na plateia para prestigiar o trabalho do grupo da professora Rita.
A peça montada pela equipe estará em cartaz, em breve, no Teatro Caleidoscópio, no Sudoeste. Mais informações pelo site http://teatrocaleidoscopio.blogspot.com/
Kézia Abiorana
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