sábado, 12 de novembro de 2011

Invisíveis, mas tão próximas...




Por Zildenor Ferreira Dourado

Imaginárias ou reais? “As cidades invisíveis”, assim chamadas pelo autor do livro original, o escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985), estão bem perto de nós que disputamos espaços e sobrevivência em um mundo “civilizado”, capitalista, cada vez mais urbano e selvagem, recheado de contradições. As metáforas de Calvino, com suas alegorias imagéticas, tornam o texto dialético, atualíssimo e universal. Quem é que não habita hoje uma cidade invisível, tão diferente daquelas que os usurpadores políticos supõem existir?
A história apresentada, na adaptação da professora Renata Pallottini, com o mesmo nome do livro de Calvino, tem aproximação com fatos reais, como a saga da  expansão mercantilista e a conquista de cidades no final da Idade Média, capitaneada pelo  legendário explorador veneziano Marco Polo (1254-1324).
O foco da narrativa fictícia é    a relação de cumplicidade entre o anti-herói Marco Polo e o seu líder, o  imperador dos tártaros, Kublai Kahn. Enquanto aquele conhecia as cidades, em suas viagens, este as dominava, mas não as conhecia, in loco. Desse modo, era fantasioso e ufanista o  relato do navegador  e “amado amigo” sobre a realidade das cidades conquistadas.  
A leitura cênica apresentada nesta edição do “Quartas Dramáticas”, no anfiteatro 9 da Universidade de Brasília (UnB), aborda, contudo,  muito mais do que uma releitura de  antigos fatos épicos: expõe as mazelas das  ocupações urbanas e do processo de dominação cultural, onde a ética “apodrece”, como bem define o  atormentado  imperador, satirizado no texto de Calvino
A transformação do texto do brilhante escritor italiano __ tão denso e detalhado em críticas à sociedade  __ em uma peça teatral mais enxuta foi um desafio executado com competência por Pallottini. Mas a encenação coordenada pelo professor da UnB, Augusto Rodrigues (que interpretou Kubai Kahn) suprimiu  trechos interessantes da proposta de adaptação feita por Pallottini, provavelmente em virtude das dificuldades da representação em improvisado ambiente acadêmico, num curto espaço de tempo.
 Mesmo com a supressão de cenas com mais ação nos conflitos retóricos travados entre os dois protagonistas, previstas no roteiro daquela professora e poetisa, o resultado do espetáculo levado ao palco alternativo da UnB é positivo. Os estudantes são estimulados a conhecer com mais profundidade textos clássicos interessantes, como a obra de Calvino, que certamente provoca reflexões sobre as complicadas relações humanas/coletivas nas  ocupações urbanas pelo mundo afora, construídas ao longo dos séculos de expansão comercial, com a imposição de costumes e modelos imperialistas de desenvolvimento .  
 Logo na abertura do texto, os espectadores se deparam com o mea culpa, desenvolvido pelo personagem do imperador Kubai Klan, ao admitir a Marco Polo que seu império desmoronara, corrompido. Essa revelação acabaria por desvendar uma cadeia de sentimentos contraditórios no imperador, desencantado com a derrocada moral  do seu império.
 “Meus ministros falam comigo das coisas do Império, mas só me contam o que julgam que eu quero ouvir”, reclama Kubai Klan. È Marco Polo quem desfaz os mitos que alimentam a imaginação daquele homem poderoso. O navegador veneziano expõe-lhe, finalmente, as contradições das conquistas. Mostra-lhe que toda aquela situação foi forjada por uma retórica imaginária e falaciosa. È o conflito provocado por essas constatações que enriquece o texto poético da peça, suas sutilezas filosóficas e ácidas críticas sociais. Revelam a crueza do mundo real em contraposição ao imaginário. Essa ruptura com a ideia do grandioso império  acaba por matar o ex-poderoso Kubai Klan
 Na interpretação do Quartas Dramáticas destacou-se a interpretação segura dos atores/leitores, embora tenha faltado um pouco mais de entonação nas falas do imperador, uma personagem que poderia ser construída com mais carga dramática. O figurino foi apropriado, simples, mas sem caracterizar os “maltrapilhos” previstos no texto de Pallottini.
Interessante, convém ressaltar, o blackface às avessas do eficiente ator/estudante negro, que utilizou  uma máscara branca para interpretar o italiano Marco Polo. Ou seja, um vanguardista whiteface, bem sincronizado com a quebra de paradigmas  desenvolvidos pela personagem que, exorta em suas análises sobre os povos dominados: “Todos os deuses são aceitos. Há deuses negros e brancos”
Os recursos cênicos para ambientar a morte do mítico imperador Kubai Klan foram criativos e eficazes. Uma das mais visíveis e lamentáveis lacunas deixadas pela representação da leitura cênica, porém,  foi o abandono da sonoplastia, que no texto original de Calvino trazem significados relevantes, como a exploração de um lirismo poético marcante nas várias canções que enriquecem o texto.
 Assim, os espectadores não puderam, por exemplo, desfrutar das alegorias criadas na estrofe final: “Acabou-se a canção do que não é/ Acabou-se a canção do que queremos ser/ da vida e dos amores, do ermo e da solidão/ acabou-se a canção/Acabou-se a canção do que nunca fazemos. Até o dia em que se faça outra canção”.
 Para os que não puderam comparecer à representação cênica, na UnB, ou  aos que querem aprofundar a interpretação textual, o ideal é buscar conhecer na íntegra o livro  de Calvino __ ou também a adaptação de Palottinni, que está longe de ser uma “traição”. Textos para serem lidos com atenção redobrada, sem o corre-corre das encenações teatrais, que limitam nosso direito de embarcar em viagens literárias incríveis.

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