Flávia
Limoeiro Pereira
Matrícula: 12/0012476
O
projeto Quartas Dramáticas realizou no dia 05 de dezembro de 2012 a leitura
cênica de Anjo Negro, peça teatral de
Nelson Rodrigues, que este ano estaria comemorando um século de vida. Dirigido
por Clarice Costa, o espetáculo tinha em seu elenco Ana Regina Neri, Clarice
Costa, Gustavo Araújo, Lara Arce, Sheila Campos e Sérgio Trappa. Parecia estar
previsto o formato de palco italiano, com algumas cadeiras dispostas em direção
ao mesmo espaço. No entanto, o grande público que lotou a sala BT 16 do
Departamento de Artes Cênicas transformou o ambiente em palco de arena, e a
apresentação ocorreu com sucesso assim mesmo.
Em Anjo Negro, Nelson Rodrigues aborda temas que sempre causaram
polêmica e, até hoje, são motivos de discussão, como a traição, o incesto e
principalmente o preconceito racial. Ismael é negro, mas não aceita sua
condição, queria ter nascido branco e despreza sua cor. Sua esposa Virgínia, muito
alva, vive como prisioneira tamanho é o ciúme de Ismael, que proíbe a entrada
de qualquer homem em sua casa, cercada por muros altos. O texto começa com um coro de Senhoras negras
anunciando a morte de uma criança, filho de Virgínia, afogado em uma bacia; é o
terceiro que morre. Tem-se aí um outro assunto tratado, o infanticídio, já que
futuramente descobre-se ter sido Virgínia quem matou os próprios filhos por não
querer criar crianças negras. Diante da morte do menino, Elias, cego, branco e
irmão de criação de Ismael, visita-o e, apesar de sua presença não ser
desejada, é permitido a passar a noite na casa. Durante sua estadia, Elias
conhece Virgínia que, encantada com os traços finos do cego e sua dessemelhança
com Ismael, trai o marido. Ismael suspeita que algo tenha ocorrido e mata o
irmão. Meses depois, Virgínia tem uma filha chamada Ana Maria, desta vez
branca, e cujo pai é Elias. Ismael cega a menina e a alimenta de conceitos
preconceituosos acerca da cor, dizendo que ele, Ismael, é o único homem branco,
e apresenta os negros como personificação de tudo o que é mal. O incesto é mais
claro no momento em que nos é revelado o fato de Ismael já ter tido relações
sexuais com a filha de Virgínia e Elias. O fim culmina com a morte de Ana
Maria.
Uma das mais fortes críticas ao
preconceito racial é o fato de Ana Maria, mesmo não entendendo o conceito de
cores por ser cega, discriminar uma etnia apenas por ouvir de seu pai
pensamentos contra esse grupo “diferente”. Isso mostra a irracionalidade do
preconceito, já que este não existiria se não fossem as ideologias racistas
criadas pelo próprio ser humano no decorrer da história e de acordo com sua
cultura.
Apesar de Nelson Rodrigues ser um
autor moderno, estão incluídos em sua obra elementos característicos da
tragédia grega. Em primeiro lugar o mais evidente: a morte. É notável como sua
presença é freqüente; a cada ato há pelo menos uma morte. No primeiro ato, quem
morre é o filho de Ismael e Virgínia, e ele não é o primeira criança a morrer.
Ismael, no segundo ato, atira em Elias e o mata quando descobre que foi traído,
revelando seu nível intenso de ciúme e possessividade. No terceiro e último
ato, quem morre é Ana Maria; morte sugerida pela própria mãe. Além da morte,
percebe-se a existência de um coro, na peça formado pelas senhoras pretas,
“cuja função é, por vezes, profética; têm sempre tristíssimos presságios”.
Outra semelhança é a abordagem da cegueira, como há em Édipo Rei; Elias e Ana Maria são cegos por culpa de Ismael, que os
cegou propositalmente.
Para a leitura cênica, o elenco e a
direção optaram por utilizar a técnica do coringamento, em que todos os
personagens podem ser interpretados por qualquer um dos atores. Durante a
apresentação, isso não ocorreu em demasia; apenas Vírginia foi interpretada
pelas atrize Sheila Campos e Lara Arce, tendo esta também representado Ana
Maria. Ana Regina Neri ora entrava em cena como as senhoras pretas, ora lia em
voz alta as rubricas, o que dava um tom maior de narração à montagem. Quem
representava Ismael era um ator branco, o que pode ter causado alguma
inquietação em quem assistia. Porém, disse Clarice Costa que, primeiramente, a
peça pretendia fugir do formato puramente realista, e também que causar algum
desconforto acerca disso era um dos obejtivos.
Para a montagem, optaram por cortar
a cena em que Ismael se reencontra com Elias e que sucede o anúncio das
senhoras sobre a morte da criança. Em alguns momentos, usavam música e canto
como recurso. A peça, de caráter expressionista, também utilizou a iluminação
para chegar a essa estética. A sala, coberta por tecido preto, ganhava dimensão
com o uso de luzes em diferentes cores, vermelho, azul e com a criação de
figuras durante a cena. Um exemplo disso é o encontro de Virgínia com Elias.
Nessa situação, o encontro amoroso entre os dois é expresso por meio de figuras
formadas pelas sombras dos dois atores. Era colocado entre o espaço de
encenação e a platéia um pedaço de tecido, e, com as luzes posicionadas na
parte posterior do palco, o jogo de dança com sombras era performatizado.
O cenário era simples, o clima era
criado pela iluminação e pela música. Não eram muitos os objetos de cena com os
quais as personagens interagiam. Porém, os que surgiam tinham sempre uma função
de atuar em conjunto com o ator. Entre esses objetos estão a penteadeira onde
Virgínia se arruma no início da apresentação, mostrando-se desde já como mulher
vaidosa embora temerosa quanto ao ciúme violento de Ismael. Outra cena bela é o
banho de Ismael. Ele leva consigo uma bacia, adentra no palco, despe-se e lava
o corpo demonstrando o asco e o ódio que tem com a própria cor. Essas cenas
individuais, disse a diretora, faziam parte da preparação dos atores para
interpretarem as personagens e não estão presentes no texto original de Nelson
Rodrigues. No entanto, algumas delas foram inseridas na montagem.
Todas as personagens aparecem com
roupas pretas e simples, com exceção de Ana Maria, que usa vestido e laços
brancos, nos pés; sapatos vermelhos. No texto rodriguiano também há esse
contraste de cores: no primeiro quadro, “Virgínia, a esposa branca, muito alva;
veste luto fechado” enquanto “Ismael, o Grande Negro” usará sempre um “terno
branco, de panamá, engomadíssimo, sapatos de verniz.”
O público reagiu bem às ironias
presentes em Anjo Negro. O riso, em
vez de contido, podia ser ouvido graças à bela atuação do elenco, que dava cor
ao texto e transmitia bem as partes risíveis da obra. Dessa forma, a peça, já
muito densa e pesada, ganhava certa leveza e neutralidade em alguns desses
momentos, mas nunca deixando de abordar de maneira crítica temas como o
machismo, o preconceito, o estupro, o infanticídio, o incesto, o ciúme e a
traição. Anjo Negro, antes censurado,
pode agora ser encenado sem perder seu valor, já que os temas continuam a ser
importantes, ainda causam polêmica, mas agora podem ser postos abertamente em
discussão.
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