RESENHA
CRÍTICA DE ANJO NEGRO
Vicente de Paula, 12/0178206
Comunicação Social/Jornalismo
A
essência da genialidade de Nelson Rodrigues é sexualidade. Esta é uma temática
inesgotável em sua obra, no entanto sua
maneira impudica de nos contar o indizível nunca permite que ela fique
desgastada, nos surpreendendo, pra não dizer “assustando” com sua literatura.
“Anjo negro”, sem dúvida é assustadora e não porque tenha monstros de outro
mundo, mas porque nos choca com as monstruosidades humanas, que por mais que
pareçam incabíveis, são possíveis.
Diante
da perplexidade do texto do Nelson somos instigados violentamente a refletir
sobre tabus de nossa sociedade: preconceito racial, sexo, hipocrisia,
interesses econômicos... É um texto eminentemente político embebido de toda uma
tensão dramática trágica que reforça a beleza literária estética, mas ainda
assim se mantendo engajada. A encenação que ocorreu na 4ª feira tenta
acompanhar este processo político sentimental. O texto não foi seguido à risca,
por exemplo, o diálogo entre Ismael e Elias foi suprimido. Outras partes improvisadas,
já que o texto não havia sido decorado todo e os atores faziam uso da leitura
em cena. De todo modo, essas nuances com o texto não alteraram substancialmente
o conteúdo de Nelson e nem atrapalharam tanto o andamento da apresentação.
Envoltos
por um tecido negro, o público disposto circularmente, pode observar bem de
perto os poucos elementos cênicos, um figurino sóbrio e uma iluminação
incrivelmente expressiva que colaboraram muito nessa construção estética
engajada. Além disso a trilha sonora emociona intensamente. A “melodia
sentimental” de Villa Lobos é realmente tocante, tanto que nem me preocupei em
relacionar a letra com a cena, se era propício e etc. Apenas me deixei levar
pelo êxtase da apreciação. Agora depois deste momento, acredito que tenha sido
bastante apropriado já que é uma canção belíssima que nos clama a acordar para
a beleza da vida, além de relacionar a clara lua com a noite escura, essa
junção perfeita, que remete a tumultuada relação da branca Virgínia com o negro
Ismael. É um apelo acalentado para que eles esqueçam preconceitos sociais e
conseguiam a união perfeita como a da lua e da noite. Outra canção que nas
discussões em sala questionamos sua relevância foi “O que será” de Chico de
Buarque. Aparentemente não tem muito sentido, se avaliarmos pelo prisma
político que essa canção adquiriu na ditadura militar. No entanto, pra mim foi
ideal, pois mais do que política, é uma canção de um amor avassalador,
irracional, desmedido que ninguém sabe o que é ou que será este sentimento
incompreensível que impulsiona infanticídios, violações, assassinatos e uma
série de impropérios. Não sei em se a cena da violação seria a mais adequada.
Não estruturei a esquematização das cenas. Mas não há que se questionar que foi
relevante naquela cena em que Ismael “viola” Virgínia. Naquele momento tudo
está à flor da pele, como sugere a canção até em seu subtítulo.
Sobre
a interpretação dos atores, questionou-se a atuação do ator que interpretou
Elias. Evidente que não era uma interpretação plenamente eficiente. A voz se
não era bem projetada e não porque ele falasse baixo, algo a prendia. No
entanto aquela interpretação comedida pra mim foi mais adequada de todas. Elias
é passivo, dócil, é puro. A encenação dele deveria mesmo ser contida, introspectiva.
O que me incomodou na sua interpretação foi um olhar do ator. O olhar é tudo
para uma personagem. Ele não tinha olhar de cego, nem de puro, não tinha o
olhar interior, pois a personagem Elias, durante a leitura, me pareceu ter um
áurea bastante introspectiva. Mas pelo menos não possui a histeria dramática
comum a todos os projetos de atores atuais. A interpretação do ator que fez
Ismael foi a melhor Ele conservou expressão carrancuda, sombria... literalmente
escura. E o mais importante traduziu isso no olhar e no corpo, nos gestos. Os
seus movimentos eram bastante precisos. Nos picos de ira, por exemplo, possuía
exatidão da agressividade, sem exageros, sem apelar à carga dramática da
cena. Em nossas aulas, questionou-se a
cena de nudez dele. Afirmaram ser uma bela cena, porém inoportuna e
descontextualizada. Discordei prontamente. A cena é essencialmente bela,
intensa e bastante oportuna. Bela e intensa todos acharam, explico a
conveniência dela em minha concepção: Pouco antes da cena, Ismael e Virginia
discutiram sobre o caso dela com Elias e o filho que ela carregava, é uma cena
que antecede a entrada de Ana Maria se não me engano. Pois bem, esta cena, aos
meus olhos, representou a “limpeza” do útero de Virginia, que agora acalentaria
uma vida branca e não mais negra. É como se a semente (esperma) de Ismael se
transformar-se em algo branco que ia purificar o ventre de Virginia e gerar um
filho branco. Aquele ritual dele representava a gestação de um ser finalmente
branco nas entranhas marcadamente negras de sua mulher. Agora acredito que esta
limpeza de Ismael teria que ser feita por Elias, e não apenas por ele. Foi
Elias que embranqueceu a prole do casal, ele purificou o útero de Virginia.
Também seria interessante que após este ritual de limpeza, que logo depois
Virginia acalentasse Ismael nu, naquele lençol branco, simbolizando que
finalmente ela recebera a pureza, a brancura que ambos desejavam.
Sobre
a interpretação das atrizes, que é muito comum a todos atores atuais, sobretudo
em textos de Nelson Rodrigues: O exagero! As personagens de Nelson mais frágeis
tem bastante força, todos tem uma pulsão sexual ainda que não explicitada. No
entanto, acredito que os atores apelam dessa densidade dramática.
Especificamente no caso da peça: A priori, gostei muito da interpretação das
atrizes. No entanto em alguns momentos, me irritava com certos gestos
excessivos, uma energia espalhafatosa e desnecessária, a voz gritada, quase
empostada... Tanto se questiona a empostação da voz e elas se colocavam numa
postura como se sentissem a maior dor do mundo. É claro que muita dessa dor era
exigida pelas personagens. Eram personagens angustiadas, reprimidas, que não se
aceitavam e criavam outras realidades, personagens insanos capazes de matar
naturalmente. No entanto, esta naturalidade do processo se vangloriou um pouco
se tornando excessivamente trágica. A esquizofrenia natural das personagens às
vezes se perdia numa histeria desvairada. Este tipo de interpretação extravasa
os sentimentos, exterioriza toda a alma da personagem. Nesta obcessão de
entregar ao público tudo o que a personagem tem a oferecer, esquecem-se do
interior da personagem de olhar para dentro, de saber se recolher para que a
coisa flua. Talvez isso que eu desejo esteja relacionado com o pensamento de Stanislavski,
que busca um realismo sensível para que a cena se torne tão natural a ponto de
gerar uma autoidentificação entre personagem e público.
Acredito
que Nelson pretendia que o público visse nas perversidades encenadas algumas
das pequenas maldades do seu ser. A intenção de Nelson é que cada um da plateia
veja sua perversão sendo desnuda no palco, sem julgamentos, sem amarras
sociais... Esse envolvimento estético com o público não torna a peça menos
política, ao contrário: Ao perceber suas fragilidades escancaradas no palco,
quem está na plateia vai ser empurrado a uma reflexão sobre seus atos e a
partir daí se libertar transformá-los. Isso é extremamente político. Não digo
que essa libertação será sempre positiva. Quem vê “anjo negro” por exemplo,
pode analisar suas atitudes para lutar contra o preconceito, ou se declarar
racista de vez, pode se abrir pra qualquer forma de amor ou cometer suicídio...
Ao anjo pornográfico cabe apenas dar o tiro nas zonas mais profundas do nosso
ser, escondidas por milhões de buracos de fechadura que ele espia habilmente.
Se esse tiro será certeiro ou não, depende do recalque de cada um.
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