sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

TIROS DE UM ANJO NEGRO-PORNOGRÁFICO




RESENHA CRÍTICA DE ANJO NEGRO
Vicente de Paula, 12/0178206
Comunicação Social/Jornalismo

A essência da genialidade de Nelson Rodrigues é sexualidade. Esta é uma temática inesgotável em sua obra, no entanto  sua maneira impudica de nos contar o indizível nunca permite que ela fique desgastada, nos surpreendendo, pra não dizer “assustando” com sua literatura. “Anjo negro”, sem dúvida é assustadora e não porque tenha monstros de outro mundo, mas porque nos choca com as monstruosidades humanas, que por mais que pareçam incabíveis, são possíveis.
Diante da perplexidade do texto do Nelson somos instigados violentamente a refletir sobre tabus de nossa sociedade: preconceito racial, sexo, hipocrisia, interesses econômicos... É um texto eminentemente político embebido de toda uma tensão dramática trágica que reforça a beleza literária estética, mas ainda assim se mantendo engajada. A encenação que ocorreu na 4ª feira tenta acompanhar este processo político sentimental. O texto não foi seguido à risca, por exemplo, o diálogo entre Ismael e Elias foi suprimido. Outras partes improvisadas, já que o texto não havia sido decorado todo e os atores faziam uso da leitura em cena. De todo modo, essas nuances com o texto não alteraram substancialmente o conteúdo de Nelson e nem atrapalharam tanto o andamento da apresentação.
Envoltos por um tecido negro, o público disposto circularmente, pode observar bem de perto os poucos elementos cênicos, um figurino sóbrio e uma iluminação incrivelmente expressiva que colaboraram muito nessa construção estética engajada. Além disso a trilha sonora emociona intensamente. A “melodia sentimental” de Villa Lobos é realmente tocante, tanto que nem me preocupei em relacionar a letra com a cena, se era propício e etc. Apenas me deixei levar pelo êxtase da apreciação. Agora depois deste momento, acredito que tenha sido bastante apropriado já que é uma canção belíssima que nos clama a acordar para a beleza da vida, além de relacionar a clara lua com a noite escura, essa junção perfeita, que remete a tumultuada relação da branca Virgínia com o negro Ismael. É um apelo acalentado para que eles esqueçam preconceitos sociais e conseguiam a união perfeita como a da lua e da noite. Outra canção que nas discussões em sala questionamos sua relevância foi “O que será” de Chico de Buarque. Aparentemente não tem muito sentido, se avaliarmos pelo prisma político que essa canção adquiriu na ditadura militar. No entanto, pra mim foi ideal, pois mais do que política, é uma canção de um amor avassalador, irracional, desmedido que ninguém sabe o que é ou que será este sentimento incompreensível que impulsiona infanticídios, violações, assassinatos e uma série de impropérios. Não sei em se a cena da violação seria a mais adequada. Não estruturei a esquematização das cenas. Mas não há que se questionar que foi relevante naquela cena em que Ismael “viola” Virgínia. Naquele momento tudo está à flor da pele, como sugere a canção até em seu subtítulo.
Sobre a interpretação dos atores, questionou-se a atuação do ator que interpretou Elias. Evidente que não era uma interpretação plenamente eficiente. A voz se não era bem projetada e não porque ele falasse baixo, algo a prendia. No entanto aquela interpretação comedida pra mim foi mais adequada de todas. Elias é passivo, dócil, é puro. A encenação dele deveria mesmo ser contida, introspectiva. O que me incomodou na sua interpretação foi um olhar do ator. O olhar é tudo para uma personagem. Ele não tinha olhar de cego, nem de puro, não tinha o olhar interior, pois a personagem Elias, durante a leitura, me pareceu ter um áurea bastante introspectiva. Mas pelo menos não possui a histeria dramática comum a todos os projetos de atores atuais. A interpretação do ator que fez Ismael foi a melhor Ele conservou expressão carrancuda, sombria... literalmente escura. E o mais importante traduziu isso no olhar e no corpo, nos gestos. Os seus movimentos eram bastante precisos. Nos picos de ira, por exemplo, possuía exatidão da agressividade, sem exageros, sem apelar à carga dramática da cena.  Em nossas aulas, questionou-se a cena de nudez dele. Afirmaram ser uma bela cena, porém inoportuna e descontextualizada. Discordei prontamente. A cena é essencialmente bela, intensa e bastante oportuna. Bela e intensa todos acharam, explico a conveniência dela em minha concepção: Pouco antes da cena, Ismael e Virginia discutiram sobre o caso dela com Elias e o filho que ela carregava, é uma cena que antecede a entrada de Ana Maria se não me engano. Pois bem, esta cena, aos meus olhos, representou a “limpeza” do útero de Virginia, que agora acalentaria uma vida branca e não mais negra. É como se a semente (esperma) de Ismael se transformar-se em algo branco que ia purificar o ventre de Virginia e gerar um filho branco. Aquele ritual dele representava a gestação de um ser finalmente branco nas entranhas marcadamente negras de sua mulher. Agora acredito que esta limpeza de Ismael teria que ser feita por Elias, e não apenas por ele. Foi Elias que embranqueceu a prole do casal, ele purificou o útero de Virginia. Também seria interessante que após este ritual de limpeza, que logo depois Virginia acalentasse Ismael nu, naquele lençol branco, simbolizando que finalmente ela recebera a pureza, a brancura que ambos desejavam.
Sobre a interpretação das atrizes, que é muito comum a todos atores atuais, sobretudo em textos de Nelson Rodrigues: O exagero! As personagens de Nelson mais frágeis tem bastante força, todos tem uma pulsão sexual ainda que não explicitada. No entanto, acredito que os atores apelam dessa densidade dramática. Especificamente no caso da peça: A priori, gostei muito da interpretação das atrizes. No entanto em alguns momentos, me irritava com certos gestos excessivos, uma energia espalhafatosa e desnecessária, a voz gritada, quase empostada... Tanto se questiona a empostação da voz e elas se colocavam numa postura como se sentissem a maior dor do mundo. É claro que muita dessa dor era exigida pelas personagens. Eram personagens angustiadas, reprimidas, que não se aceitavam e criavam outras realidades, personagens insanos capazes de matar naturalmente. No entanto, esta naturalidade do processo se vangloriou um pouco se tornando excessivamente trágica. A esquizofrenia natural das personagens às vezes se perdia numa histeria desvairada. Este tipo de interpretação extravasa os sentimentos, exterioriza toda a alma da personagem. Nesta obcessão de entregar ao público tudo o que a personagem tem a oferecer, esquecem-se do interior da personagem de olhar para dentro, de saber se recolher para que a coisa flua. Talvez isso que eu desejo esteja relacionado com o pensamento de Stanislavski, que busca um realismo sensível para que a cena se torne tão natural a ponto de gerar uma autoidentificação entre personagem e público.
Acredito que Nelson pretendia que o público visse nas perversidades encenadas algumas das pequenas maldades do seu ser. A intenção de Nelson é que cada um da plateia veja sua perversão sendo desnuda no palco, sem julgamentos, sem amarras sociais... Esse envolvimento estético com o público não torna a peça menos política, ao contrário: Ao perceber suas fragilidades escancaradas no palco, quem está na plateia vai ser empurrado a uma reflexão sobre seus atos e a partir daí se libertar transformá-los. Isso é extremamente político. Não digo que essa libertação será sempre positiva. Quem vê “anjo negro” por exemplo, pode analisar suas atitudes para lutar contra o preconceito, ou se declarar racista de vez, pode se abrir pra qualquer forma de amor ou cometer suicídio... Ao anjo pornográfico cabe apenas dar o tiro nas zonas mais profundas do nosso ser, escondidas por milhões de buracos de fechadura que ele espia habilmente. Se esse tiro será certeiro ou não, depende do recalque de cada um.

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